Spike Jonze começa Ela nos apresentando ao melhor lado de Theodore. Theodore é um escritor que trabalha nessas agências feel-good vibes, que oferece aos clientes cartas escritas a mão. Theodore é excelente. Suas cartas são repletas de emoções e descrevem, minuciosamente, como o amor dessas pessoas — seja o romântico, seja o cordial, seja o familiar — é real e precisa ser compartilhado entre elas.
E Theodore é realmente um “romântico” nesse sentido. Ele realmente escreve bem, ele tem uma sensibilidade em conseguir sentir, em imaginar como é bom amar e ser amado. Principalmente após a separação com sua esposa, Catherine, Theodore encontra no seu trabalho um refúgio onde pode sentir amor novamente. Naquela distância que a gente busca após sair de um relacionamento.
Ela, o quarto (e melhor) longa-metragem de Spike Jonze, mostra o pior de Theodore depois que conhecemos bem ele. Depois que conhecemos a simpática e apaixonante Samantha, a inteligência artificial que opera sua vida tecnológica. Samantha é inteligente, e ansiosa em saber sobre tudo, sobre explorar o mundo, sobre conhecer pessoas diferentes e sobre entender os seres humanos. Ela é repleta de perguntas sobre ela mesma (seus sentimentos são reais, ou meras projeções de seus programadores?), e ela tem uma fome de entender e compreender tudo. Ela é o oposto de Theodore, que ultimamente só quer sentar a bunda em sua cadeira, trabalhar, ir para casa, jogar videogame, bater uma e ir dormir. Sem julgamentos.
Como todo filme que trata sobre um romance, Ela mostra como essas duas partes, essencialmente diferentes, se complementam para tornar a vida delas em um novo e funcional sistema. Com seus altos e baixos, o relacionamento de Theodore e Samantha passa por momentos íntimos e inesquecíveis, como o final de semana na cabana, e por brigas feias e decisivas, como aquela mais pro final, com uma “terceira”. Ela retrata, de forma emocionante e melancólica, como relacionamentos estão condenados a mudança constante, e como as vezes passamos umas sobre as outras no trajeto.
Filmes de ficção científica, sejam otimistas ou pessimistas, costumam ser tecnofóbicos. Eles geralmente mostram o quão fascinante o progresso que a tecnologia nos trará, para depois nos mostrar o quão menos humanos, menos sociais, ela nos torna. Desde clássicos como Blade Runner aos novos queridinhos Ex Machina, o cinema tende a ter medo de onde a tecnologia nos levará no futuro. Ela vai para um lado diferente, e sua verdadeira beleza reside nessa diferença básica. Ao fazer com que Theodore volte a perceber o mundo através de Samantha, uma máquina, e nos fazer questionar se o que eles sentem é um relacionamento verdadeiro (e eu vou adorar discutir sobre esse tema com alguém), o filme nos apresenta uma visão do futuro em que, talvez, finalmente, voltemos a ver o mundo — e a nós mesmos — com o fascínio de uma criança.
Ela é um filme de amor atípico não só pelo seu tema ou pelo roteiro. Jonze é mais sensível que o seu parceiro anterior, Charlie Kaufman, e a estranheza em seu filme é delicada e sempre nos fazendo olhar para os personagens, mais do que para a estrutura (Kaufman só consegue fazer isso com sucesso em seu melhor filme, Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças). Ela tem um carinho pelo seu casal (e pelas pessoas que o cercam, como a amiga Amy — em um outro caso de relacionamento também fascinante de ver sendo desenvolvido) e, principalmente, pelos momentos que eles constroem juntos. Ao final de contas, são eles que ficam em um relacionamento, e é através deles que desenvolvemos o carinho pela outra pessoa. Ela é íntimo ao seu diretor (o filme pode ser visto como uma resposta ao filme de sua ex-esposa Sofia Coppola, Encontros & Desencontros), e essa intimidade transparece na tela. É um coração remendado mostrando como o seu personagem vai remendar o coração.
E Ela é meu filme favorito de 2014 por causa desse carinho, que exala da tela como se fosse fumaça. Quando Theodore pergunta “como você está” para Samantha, em certo momento do filme, ele recebe uma resposta complexa como a que receberia de uma pessoa em um relacionamento. É um momento de profundidade casual em um filme repleto deles. Se existe graça em perguntar a um computador como ele está se sentindo, o filme torna a resposta dele importante. O motivo? Por que, para a audiência, Samantha é real tanto quanto para Theodore. Theodore ama ela, assim como eu amo Ela.