A herança de Peanuts

Peanuts é sobre como os sonhos podem nunca se tornar realidade.

Os personagens de Peanuts estão em qualquer lugar. Snoopy e Charlie Brown, os grandes protagonistas da tira em quadrinhos mais famosa do mundo, estão em cartões de feliz dia do amigo, em canecas, em escovas de dente, em panfletos de apólices de seguro… em absolutamente qualquer lugar. É assim que nós os conhecemos, agora. Sorrindo, confortáveis e felizes. É fácil de aceitar essa versão feliz dos personagens.

Com um filme sendo lançado nessa quinta-feira nos cinemas do país, Charlie Brown e seus amigos ganham um pouco da atenção que tinham há algumas décadas atrás. Já faz um bocado de tempo, afinal, que eles não eram quem costumavam ser. O merchandise de Peanuts, afinal de contas, os manteve vivos na forma de adesivos, estampas, e ilustrações, mas essas peças licenciadas geralmente imaginam tais personagens como pequenos agentes de felicidade, buscando um dia melhor, todos os dias. Os personagens de Peanuts, porém, são melancólicos e agridoces, buscando por algo na vida — não necessariamente um dia melhor.

Durante os cinquenta anos de sua publicação diária, Peanuts apresentou uma história brilhante, fria e brutal. É uma obra extremamente engraçada sobre as profundezas absolutas do desespero humano, e como nós constantemente estamos aptos a falhar.

Capturando esse desespero com tons melancólicos e gracejos felizes, Peanuts é uma das maiores obras literárias do século 20, e uma das mais únicas.

Uma das maiores conquistas de Peanuts é que sua popularidade e influência são grandes a ponto de sua forma original existir até hoje. A editora L&PM publica todo ano um volume da série Peanuts Completo, que consiste em dois anos das tiras diárias (o oitavo volume, de vinte e cinco, está em pré-venda). Mesmo sem acesso aos livros, você pode ler todas as tiras online no site oficial.

A primeira coisa que você pode perceber lendo as tiras (desde a primeira, publicada em outubro de 1950), é quão frio o tom do seu humor é. A emblemática primeira tira, por exemplo, apresenta “o bom e velho Charlie Brown”, um chamado que o personagem carregaria por toda a trajetória da tira, antes de continuar: “como eu odeio ele”.

Imagem da primeira tira de Peanuts

No início da tira, Charlie Brown é claramente o protagonista, o único personagem com traços de personalidade definidos (a famosa estampa de sua camiseta, porém, só viria meses depois). Ele tem objetivos. Ele tem até um sobrenome. Os outros personagens, porém, o desprezam ou o ignoram. E ele perde, constantemente. Ele nunca consegue o que ele quer, porque ele é superado por suas próprias falhas (um exemplo clássico, é como ele nunca consegue ir falar com a Garotinha Ruiva, sua grande paixão), ou pelos seus amigos (como quando Lucy sempre tira a bola quando ele vai chutar), ou pelo universo, que simplesmente existe (como as árvores, que adoram atrapalhar suas pipas).

Ninguém em Peanuts consegue o que quer, se você parar para pensar. Eles podem ser derrotados por suas desilusões de grandiosidade, como Schroeder, que sonha em tocar como Beethoven em um piano de brinquedo; ou pelos seus próprios traços, como Lucy, que sempre vê a realidade das coisas confrontando como ela gostaria que tudo funcionasse. O mais triste em Peanuts, porém, é Snoopy, que não só tenta inventar outras vidas que só ele pode visualizar, mas também é o único dos personagens que está condenado a perceber o quão preso a realidade ele está.

Essas personalidades características são fruto do trabalho de Charles Schulz, o único a escrever e desenhar as tiras de Peanuts por cinquenta anos, todos os dias. Schulz colocava em suas tiras seus sentimentos mais obscuros, seus maiores pesadelos e seus sonhos jamais realizados. Por mais paternal e querido que Schulz parecesse em entrevistas no final de sua vida, ele sempre comentava o quão soturno era seu método de desenho e escrita. E isso é visível em cada personagem que ele escreveu. Um exemplo famoso é que, quando seu primeiro casamento estava acabando, as tiras geralmente se concentravam em como Lucy criticava Schroeder, que se preocupava mais com sua arte do que com ela — em uma crítica de Schulz pela sua ex-esposa.

Schulz podia ser Lucy, também, como ele também poderia ser Charlie Brown (sua epítome), Linus, Snoopy ou até mesmo Woodstock. Como Sarah Boxer comenta, os personagens de maior sucesso são aqueles que, graças as suas obsessões, criam fantasias das quais jamais conseguiriam escapar. Schulz pode ter se tornado o cartunista de sucesso que ele sempre quis ser quando criança, mas seus sentimentos de inadequação daquela época eram o fator determinante do sucesso de seus personagens — “Chiqueirinho” e Shermy, personagens sem grandes características ou obsessões, nunca obtiveram o sucesso dos colegas.

Em toda a sua trajetória de cinquenta anos, Peanuts sempre refletiu o trabalho de um autor só. É possível visualizar as tirinhas e buscar nelas os valores e as preocupações de Schulz. Existe um humor leve que torna suas partes mais deprimentes suportável, mas a tristeza profunda de Peanuts sempre foi o que a tornou tão forte. E foi assim que Peanuts atingiu o sucesso a partir da década de 1960. Ele é um fruto curto e ciente de que vive em uma era em que a humanidade pode destruir a si mesma, e sempre terminava com uma piada (pode ser uma bem cruel, mas sempre uma piada). Horror servido com sorriso.

Claro, Peanuts existe até hoje não só por causa disso, mas também pela sua possibilidade de que seus personagens podem ser pegos sorrindo, as vezes. E Snoopy pode ser um bicho de pelúcia. Quando Schulz licenciou sua obra, as figuras de Charlie Brown, Lucy, Linus, Snoopy e Woodstock se tornaram mais e mais proeminentes nos Estados Unidos, se tornando até mesmo em selos do serviço postal (quando ele ainda representava algo).

Nem todos os produtos licenciados eram ruins. O Natal de Charlie Brown, que fez cinquenta anos em dezembro, é um dos melhores programas de televisão já feitos; Volte pra casa, Snoopy capturava toda a melancolia das tirinhas; mas era inegável: quando Schulz começou a vender a imagem de sua gangue, após uma grande disputa com a United Features sobre os direitos de propriedade deles, parece que seus personagens perderam algum objetivo central. Com seus personagens sendo mascotes de empresas de seguro, enfeitando cabos de escovas de dente ou estampando camisetas “inspiradoras”, Charlie Brown e sua turma não podiam mais estar furiosos com o mundo. Eles estavam sempre rindo, sempre prontos para se divertir. E essa não era a turma que havia conquistado os Estados Unidos nos últimos vinte anos.

Com Schulz ficando cada vez mais famoso (e rico), parecia mais difícil para ele retratar a turma de Charlie Brown perdida em seus problemas cotidianos. No meio dos anos ’90, por exemplo, Charlie Brown finalmente conseguiu um home-run. Schulz havia ganhado, e Charlie Brown devia ganhar também.

Com o declínio da mídia impressa, a página de tirinhas dos jornais ou fora diminuída nas últimas duas décadas, ou deixou de existir completamente. Como uma tirinha, Peanuts deixou de produzir novos conteúdos em fevereiro de 2000, quando Schulz morreu, existindo até hoje em reimpressões. Os personagens, porém, continuam por aí porque eles podem ser os brinquedos que você pode comprar.

É fácil imaginar, então, que Charlie Brown e Snoopy são hoje conhecidos não pelo que eles realmente representaram. Você pode imaginar uma criança, ou até mesmo um adulto, que conheça as figuras desses personagens, mas nunca tenha lido nenhuma tira (isso é mais comum do que você imagina).

A genialidade de Peanuts era de perceber (ou melhor, lembrar) o quão cruel a infância poderia ser — e o quanto isso poderia apelar para os adultos. Nenhuma peça de merchandising desde Volte para Casa, Snoopy conseguiu capturar isso desde então. Talvez Snoopy & Charlie Brown: Peanuts, o filme consiga. O que é importante, porém, é que alguns dos mais influentes e importantes personagens do século 20, protagonistas do maior feito editorial dos Estados Unidos, finalmente estão de volta à relevância.

Peanuts pode ter sido a obra literária que melhor conhecia o seu autor. E Schulz, o medroso e desajustado que deu vida a ela, talvez tenha sido uma das pessoas que melhor entendeu sua época e seu mundo. Peanuts é fruto de um outro tempo, sim, mas lendo (e assistindo) ele hoje, é inegável dizer que ele pertence a nós, também.