Kentucky Route Zero: Act III destrói sua alma com dívidas do passado

O ano não foi muito bom para os grandes jogos. Depois de 2013, formidável com no mínimo três jogos para entrar para a história, 2014 foi um balde de água fria com títulos em lançamentos desastrosos (sim, Assassin’s Creed, estamos falando de você), com o grande destaque do ano indo para os remakes de The Last Of UsGrand Theft Auto V e o The Master Chief Collection. Não é por nada que os títulos de melhores do ano estão indo para todos os lados. Enquanto alguns celebram Dragon Age: Inquisition como o melhor jogo do ano (um título merecido), outros apostam em Middle-Earth: Shadow of Mordor, a grande surpresa que 2014 trouxe. Embora excelentes, porém, nenhum dos dois superou o pequeno capítulo do point-and-click adventure que é o terceiro ato de Kentucky Route Zero.

Precedido pelo não menos excelente The Entertainment (que possui ligações necessárias para a total compreensão de KR0), o terceiro ato da jornada de Conway e Shannon respeita a estrutura dramática cênica dos EUA, muito inspirado nas peças de Tennessee Williams. Se os dois primeiros atos formam o cenário, os mistérios e ditam os personagens, o terceiro ato cria o ponto de virada.

Mas é aí que Kentucky Route Zero: Act III transcende e não só se transforma em um ponto de virada na própria narrativa: ele se transforma em um ponto definitivo para os jogos como um todo.

Começamos KR0 3 com um flashback. Vemos a manhã antes da partida de Conway, com ele e Lysette, a dona do antiquário em que ele trabalha, em um último café-da-manhã. Ela está doente, o Lysette’s Antiques precisa fechar. Mas há algo mais ali, que vai além da morte do filho, além da saudade do marido. Algo entre ela e Conway. Um amor? Um desejo? Esse ato nos responderá brilhantemente.

É mais um pequeno negócio que se vai nessa América em que os pequenos negócios perdem seus lugares para as grandes corporações. As contas não vão boas para ninguém, e Shannon sabe disso: ela está prestes a perder sua própria usina de reparação de TVs. O flashback acaba e voltamos para o ponto que o segundo ato nos deixara: a casa no meio da floresta de um médico. As coisas começam a mudar aí: nós não sabemos do resto do diálogo, pois estamos sob a perspectiva de Conway, mas pegamos o final. Há uma conta sobre o exame e ela precisa ser paga. A perna dele brilha — a perna não é mais dele, é da dívida. A relação inteira está formada.

Kentucky Route Zero é um adventure em que, ao invés de escolhermos o caminho pelo qual nossos personagens seguirão, definimos quem eles são. Se são pessoas sintomáticas, que vão direto ao ponto e ignoram os detalhes da vida daquelas que nos cruzam; ou se somos andarilhos, sedentos pelas histórias de terceiros. Suas escolhas de diálogo são as que refletem quem você é, e o que você saberá sobre essa história. E Act III é um dos únicos jogos a representar o sul dos EUA pós-crise econômica que assolou o país em 2008. Em que os negócios familiares tiveram de fechar para pagar dívidas de bancos; em que as pessoas, perdidas, não sabiam de onde vinham as hipotecas que lhes eram cobradas.

Existe um momento chave para isso nesse terceiro ato. Ao chegarmos no final, Conway nos conta o que aconteceu em um momento anterior, que não acompanhamos pois seguimos com outro personagem. A cena na destilaria é muito semelhante ao que aconteceu em 2008. O encontro com “Os Estranhos”, pessoas que são representadas no jogo como esqueletos brilhantes — bem como a perna de Conway. A ligação torna-se clara, aí. Bem como a perna do nosso personagem é uma dívida pendente, os Estranhos não são nada menos que corpos afundados em dívidas. O que acontece em seguida é um conjunto de desentendimentos e linguagem críptica de propósito para que Conway aceite um gole de um uísque bastante caro — tão caro, Conway nos diria depois, que ele terá de trabalhar como entregador para eles.

Para quem acompanhou a crise de 2008, a cena é bastante familiar. O desentendimento causado pela linguagem propositalmente complexa dos Estranhos ressona a linguagem evasiva usada pelos bancos, que faziam famílias sem condições financeiras assinarem montantes que elas provavelmente nunca conseguirão pagar; e pela polícia, que precisava defender uma legislação que só defende os mais ricos. Essencialmente, Conway fica desorientado, e é literalmente forçado a tomar o gole que ele não quer (se você fez algumas escolhas de diálogos no primeiro ato, saberá que ele está sóbrio há anos). Esse literalmente não é gratuito: quando a opção para tomar o gole surge, o jogo muda. Pela primeira vez até ali, ele assume controle do ponteiro do mouse e o leva até a única opção.

Esse é o momento chave de Kentucky Route Zero: Act III, em que não só a questão financeira entra em discussão, mas todo o propósito de jogos como expressão narrativa e artística. Tudo muda a partir daqui. A cena continua para seu final. E o que acontece com o jogador, que se sente traído pelos personagens e pelo próprio jogo, é de revolta e desconforto, que nos coloca em um ciclo de dívida com o personagem que nós sequer podemos pagar ou nos desculpar. É quando o jogo exibe todo seu poder de magnificência e magia para manipular o espectador e mostrar aquilo que ele realmente quer — fazer o jogador sentir no corpo, na consciência, o mesmo sentimento de seu personagem.

Em uma reportagem para a Polygon, Jake Elliott, um dos dois escritores e desenvolvedores de KR0, disse que o jogo “é uma tragédia, e todas as tragédias terminam do mesmo modo”. A dica leva aos princípios aristotélicos da Dramática, mas representam muito bem aquilo que Kentucky Route Zero é. Seu mágico realismo nos proporciona cenas memoráveis, como a canção de Junebug e a subida da Montanha do Rei, com referências ao belíssimo “Esperando Godot”. Mas em sua cena final, mais que as produções fotorrealistas por aí, Act III termina dolorosamente real.