Serena, o livro, começa bem direto. Serena, a personagem, descreve traços básicos de sua personalidade e faz um resumo da história logo na primeira página. Depois, comenta que sua infância e adolescência são desinteressantes e, depois de descrever esses estágios rapidamente, passa para o que nos interessa. De todos os livros do Ian McEwan que eu já li (e eu só não li dois ainda), é o mais dinâmico no seu início. Foge da descrição extensa, mas belíssima, do Reparação, de todo o interlúdio perfeccionista de Amor sem fim, dos longuíssimos devaneios de Sábado, e assim por diante. Mas ele o engana imediatamente aí.
Ao falar que tudo aquilo não nos interessa, McEwan é hábil. Um dos melhores romancistas vivos hoje sabe como manipular o leitor (e, segundo ele, a manipulação é um dos melhores recursos do romance) e, logo ali, nos faz prestar atenção em outra coisa: em como é serelepe a descrição de Serena, a personagem, em Serena, o seu livro. Ele nos tira a atenção em detalhes para nos focar na simpatia e manias da moça (o modo como ela conta a história é delicioso de se ler). Os motivos serão descobertos mais para frente, e eu não posso ousar tirar de você a experiência que Serena proporciona.
Serena narra a história da personagem título que, ao ser recrutada pelo MI5, vê sua carreira subir e então vertiginosamente ruir por causa de seus amantes, suas missões e um segredando que nos é deixado para a última frase do último parágrafo da última página do livro.
Como muitos outros livros de McEwan, a história não é lá uma novidade. Seguindo uma mistura de Reparação e de O Inocente, em Serena o autor cria uma história de amor e investigação no meio de uma guerra. Mas é em como ele narra a história que nos deleitamos com tudo. A progressão da história, em toda a primeira metade, é lenta e se foca muito mais em Serena na faculdade de Matemática (parte essencial para um desafio de matemática que o autor impõe o leitor no meio do livro), na sua paixão com um professor e seus primeiros meses no MI-5. É uma narrativa densa em detalhes e monótona, como se a própria envelhecida Serena não se lembrasse muito bem de tudo aquilo (e voltar naquele tempo também não a interessava), que ao conseguir sua grande missão muda completamente para uma dinâmica veloz, ágil e envolvente de paixão e mistérios dentro de mistérios.
Os joguetes de matemática durante o livro são só uma das chaves para conseguir solucionar todo o mistério (como em Sábado e Solar, é assustador o modo com que McEwan tem domínio das ciências de seus personagens — a descrição de uma cirurgia no livro de 2005 até hoje me surpreende), detalhes narrativos são importantíssimos e, se uma frase não lhe parecer muito bem encaixada, espere: há um motivo para isso e ele será apontado.
Como em Reparação, Serena impressiona por ser, na verdade, um livro sobre o poder de seu contador de histórias. É um livro sobre quem conta as histórias e como essas histórias afetam quem as ouve. Nos dois livros, esse sujeito que reage à história contada é ninguém menos que o próprio leitor, e o modo como ele reage (deliciosamente previsto e argumentado por Serena aqui) é justamente o que torna a obra ainda mais magnífica. Se na sua grande obra-prima McEwan nos dava um tapa na cara na última parte com um lindo monólogo sobre o peso do final feliz, em Serena ele nos pega de sobreaviso, com apenas um pequeno momento, uma pequena frase. Mas não com o agridoce sabor de saber a verdade, e sim o doce sabor de saber que você pode escolher em qual acreditar.