Rise and shine, Mr. Freeman. Your time has come again.
Por semanas eu me perguntei qual game deveria estrear as dicas de jogos aqui no PCM. Um Mario, já que sempre são bons? Não, muito óbvio. GTA V ou The Last of Us? Esses jogos ainda não foram aprovados no teste do tempo. Eu busquei na minha memória afetiva um jogo que, não muito velho, não muito novo, iniciou meu amor pelos jogos. Mario 64 e Ocarina of Time seriam escolhas óbvias, mas nenhum deles me veio a mente antes daquele jogo que considero eu minha porta de entrada para o mundo dos jogos como arte: Half-Life 2.
A citação que abre esse post é do G Man, e são as primeiras palavras que ouvimos ao iniciar Half-Life 2. Não há um flashback dos eventos do jogo anterior, sequer uma explicação. A experiência que a Valve Software quer nos passar é que estamos no corpo de Gordon Freeman, e pelas próximas vinte horas, você acompanhará sua trajetória sem interrupções na força rebelde humana contra a raça alienígena que o próprio Freeman liberou no primeiro jogo.
Vamos voltar um pouco na história. É 1998. Uma pequena empresa (a Valve) lança Half-Life, um título de tiro em primeira pessoa baseada no código de outro jogo em FPS, Quake. Mas ela vai além, redefinindo muitos dos padrões do gênero e estabelecendo um elemento fundamental: personagens bem desenvolvidos e uma história em que o personagem é, realmente, o centro da ação. Por mais que FPS sempre fossem do ponto de vista de um personagem, nunca antes as suas decisões eram o centro ativo da narrativa. Half-Life, mesmo tendo uma história linear sem possíveis finais alternativos, dava ao jogador a sua importância: aquilo que Gordon Freeman fazia era o que definiria sim a espécie humana. A partir de 1998, porém, o gênero do FPS sucumbiu. O impacto de Half-Life na indústria foi gigante, e todas as outras empresas que apostavam no ramo se deram apenas ao trabalho de emular as escolhas criativas do jogo da Valve em cópias rápidas. A popularização do gênero aconteceu, não há dúvidas. Mas sua qualidade era muito da discutível. Nenhum jogo desde então conseguiu trazer a força e o frescor que Half-Life trouxera antes.
Digamos que a Cidade 17 é o ambiente apocalíptico mais lindo que já vimos.
Bem. Isso foi antes de 2004. Half-Life 2 chega, seis anos depois, com uma engine escrita do zero. É momento de reformular tudo de novo? Óbvio que não. A Valve parece que segue os passos de um gênio cinematográfico, Alfred Hitchcock: a questão não é em fazer diferente de todos. É de fazer melhor do que todos.
E desde então, ninguém conseguiu, de novo. São exatos dez anos e a Valve ainda tem em mãos um título insuperável em quase todos os aspectos. Os gráficos estão desatualizados? Claro. Mas olhe a qualidade visual que é oferecida pela Source, que se baseia muito mais na iluminação e na física: um realismo sem floreios, cru e direto, que preza pela simplicidade do real. Não há excessos de realismo, granulações ou interferências na imagem. Nada deve atrapalhar o jogador em ver o jogo da melhor maneira possível. E o som? Nossa, dificilmente um jogo de FPS conseguiu superar as magistrais mixagens de som que até hoje são muito utilizadas — mas que foram criadas para Half-Life 2. E já fazem dez anos que a Valve lançou esse jogo.
O HDR como exemplo técnico no capítulo excluído, “Lost Coast”.
Sim, Half-Life 2 é um jogo de tiro linear. E os elementos que lhe são de direito estão ali: esquadrões, veículos, o uso da física e ambientes ricos em detalhes e interações. Half-Life 2 utiliza todos esses elementos porque sabe que são eles que dão a genialidade de seu gênero, e une às descobertas feitas no jogo anterior (o protagonismo, o desenvolvimento de personagens e o ponto de vista em tempo real) a grande chave de sucesso do jogo: saber quando utilizar cada um desses detalhes. Não há pressa em exibir ao jogador todas as belezas de sua jogabilidade, de seu game design e de sua narrativa. Há uma calma em Half-Life 2 que é exemplar. Seja no momento que você está num edifício sucumbindo a ataques de um tripod letal, num confronto com um helicóptero, ou uma brincadeira de física que envolve barris inflamáveis, a obra não cansa em exibí-lo sempre novos elementos que não se amontoam para serem demonstrados. Todos são urgentes em termos narrativos, e é justamente essa importância que dá a cada um dos elementos um valor indescritível e ainda superior ao que o Half-Life original havia atingido antes. A situação da história desse segundo capítulo é de urgência, e saber que você é o centro dessa guerra só lhe dá ainda mais responsabilidades perante a todos esses confrontos.
Alyx Vance, personagem central no jogo e um exemplo de desenvolvimento de relações em um jogo de tiro
São poucos os jogos que conseguem manusear tão bem o drama, e com tão poucos recursos apelativos. Há trajetos que você atravessa bairros dizimados da Cidade 17 (uma cidadela incrível e um dos ambientes mais ricos dos jogos), momentos em que você precisa atravessar dutos escuros nos canais da cidade sozinho. É desolador, mas não desesperador. Há sempre no horizonte uma luz a brilhar para que o jogador tenha esperança de que sim, seus atos irão mudar essa situação. A brutalidade com que perdemos amigos, somos apresentados a novos; conhecemos ambientes hostis e novos inimigos; e são nos passadas novas armas e esperanças; dão inveja a quaisquer grande diretor cinematográfico na ativa hoje. Half-Life 2 entrega sentimentos com vitalidade, uma vez que emprega com a Source a possibilidade de criar expressões faciais nunca antes vistas na história dos jogos (e, opinião minha, ninguém ainda conseguiu superá-los nesse quesito), e os leva diretamente ao jogador. Não há cutscenes, voiceover e Freeman não aprendeu a falar. Para todos esses artifícios há uma opção ainda melhor: Alyx Vance, uma das mais bem desenvolvidas personagens da história das narrativas interativas. Alyx é uma nova companheira com que o jogador rapidamente faz amizade e não quer deixá-la para trás. É dela os momentos mais impactantes narrativamente (revelar detalhes da história pra quem ainda não jogou é um crime). Os movimentos e as expressões de Alyx (e de qualquer outro NPC) é repleta de uma humanidade única.
Todo esse brilhantismo narrativo proporcionado pelos personagens e estético trazido pelo realismo fotográfico é fruto de um feito maior: a Source. Ela pode não ser o mais avançado motor gráfico hoje no mercado, mas consegue criar ambientes belíssimos, animações complexas e iluminações impecáveis com um uso mínimo de recursos de hardware. Até mesmo nas sequências de combate em campo aberto ou pelo downtown da Cidade 17, a Source não engasga e não oferece falhas. Tudo é feito para que a experiência seja initerrupta em tempo real, como a que Gordon presencia. A física, que possui papel central no jogo, é de uma evolução ímpar até hoje: utilizando a Havok como ninguém, a Valve cria manipulações gravitacionais em meio ao combate que podem mudar todo o destino do jogo. Quando Alyx nos apresenta a arma gravitacional, então, o jogo vai à loucura: a possibilidade de controlar a física de elementos e inimigos era impensável antes. E o momento em que recebemos a arma é memorável.
É essa a plaza que dá boas-vindas ao mundo de Half-Life 2.
Half-Life 2 é repleto desses momentos realmente únicos em que você descobre um aspecto de jogabilidade que é altamente vinculado à narrativa do jogo e que dá ao protagonista ainda mais urgência na sua tarefa. Controlar a gravidade foi só o início para Half-Life 2. Jogá-lo hoje, e não sentir o peso da idade em momento algum (pelo contrário) é uma prova de que estamos interagindo com a arte dos jogos. Uma experiência que sobrevive ao teste do tempo.
G Man fala para Gordon se levantar e brilhar. Mas a quem se refere é a Valve. Com Half-Life 2, a empresa não só se levanta e brilha. Ela cria uma obra-prima do entretenimento como ninguém antes havia criado. Ela salta e emburra a barra dos jogos para PC para um patamar que apenas ela consegue atingir.