Ela

Theodore escreve cartas de amor à mão. Claro, ele as dita ao computador e este escreve, simulando uma caligrafia humana. Ele então as imprime e lê, como se fosse o apaixonado que envia. Ela começa assim. Parece que Theodore está falando para seu suposto marido que está celebrando bodas de prata que ainda o ama. Em dois minutos, Theodore parece amar o marido tanto quanto a senhora que o contratou.

Theodore, assim como os outros protagonistas de Jonze, é um homem que prefere a solidão. Ele se encontra mais facilmente isolado, no silêncio. Ao menos nesse momento de sua vida, em que precisa enfrentar o divórcio com Catherine, sua ex-esposa com a qual cresceu.

Em uma era que as tecnologias se dizem “intuitivas” e “responsivas”, Ela é a história de amor da geração. Theodore compra o mais recente sistema operacional, OS1, e seleciona uma série de preferências que resultam em Samantha, sua inteligência virtual com configurações de privacidade desativadas. Por ser um reflexo dos medos e virtudes de Theodore, Samantha é uma personalidade somente de qualidades — afinal de contas, quem não se apaixona pelo que há de melhor em si mesmo? Sendo assim, não é possível culpar Theodore: amar Samantha é inevitável. Ele a ama. E nós também.

Baseado em um futuro não muito distante, mas sem data precisa, a humanidade vista em Ela parece ter resolvido os problemas de saúde, superpopulação e poluição. Mas parece que há uma síndrome de solidão que assola a todos, ao menos os personagens que vemos. Não por acaso que o sistema operacional precisaria ser uma companhia para essa solidão, e embora alguns não se deem muito bem com seus donos, Samantha parece cada vez se apaixonar mais pelas experiências que Theodore à proporciona. Um humano que usa do artificial como trabalho, para compor cartas realmente impregnadas de sentimento, é um prato cheio para um sistema operacional que está sempre aprendendo.

Pode ser estranho, mas Ela não é como Quero ser John Malkovich, onde o sétimo andar de um escritório leva à mente de John Malkovich. Por mais estranho que possa parecer um mundo onde um homem se apaixona por um ser que não possui corpo, o amor que sentimos por nossos gadgets, o fervor que temos ao atualizar o iPhone ou de receber uma resposta precisa da Siri é apenas um indício de que, bem, não estamos muito distantes dos melancólicos e solitários personagens que vemos na tela.

Mas não é a estranheza do relacionamento de Ela que interessa a Spike Jonze, e sim como esses personagens se amam. Theodore é um personagem egoísta, sim, mas seu amor por Samantha é incrivelmente verdadeiro. Para Samantha, Theodore é o resumo de todo um sentimento que, para ela, não há descrição. Ele é a porta de entrada dela para um mundo de informações que não a deixam parar de crescer.

Em determinado momento, Theodore diz à Samantha o que deu de errado no casamento com Catherine. A dificuldade de crescer sem assustar a outra pessoa, ver que ela está diferente daquela com a qual casou. Basicamente, é o que acontece à relação de Theodore e Samantha também. E com todos nós. Ao final, o motivo de uma briga é sempre porque algo não é o que costumava ser.

Finalmente sozinho no roteiro, Jonze se dá a liberdade de colocar muito de si mesmo na produção. Theodore é quase um reflexo de medos que o diretor já refletiu em Onde Vivem Os Monstros, I’m Here, e Scenes from The Suburbs. Jonze tem um toque mais suave que os roteiristas que escreveram seus filmes anteriores, e é essa suavidade que dá a Ela os meios-tons, o sabor agridoce das situações. Ele não pesa a mão na visão de nossa sociedade, alienada à conectividade. Não é uma preocupação ou um alarme, é apenas a verdade e, sobre ela, há pouco o que se fazer. Antes de um reflexo, Ela é um conto mágico sobre alguém que buscou em sua melhor imagem alguém para amar.

Ela reflete o quanto um relacionamento se baseia nas psiques dos integrantes. Quando Theodore pergunta à Samantha como ela está, não há a estranheza de perguntar a um computador o que sente. Há a importância da resposta: apenas com sua voz, Samantha se tornou um ser tão real para o espectador quanto para Theodore. Ela é feito desses momentos casuais que parecem banais, mas são quando os sentimentos são realmente expostos. Se os sentimentos podem transcender os corpos, é uma outra questão, e talvez o filme não busque resolvê-la, mas ao ver Theodore e Amy ao final, na cobertura do prédio, olhando para a sociedade que os abriga e finalmente abrindo os olhos para o mundo ao seu redor, talvez responda.

Por favor, vá assistir Ela. Assim como Theo, você verá o mundo com outros olhos.