Provavelmente você estava ocupado demais com Breaking Bad ou Dexter, eu sei. Mas agora que ambas as séries chegaram ao fim, você precisa de outro programa para estourar seus miolos e espalhá-los pelas paredes. Está na hora de assistir Black Mirror.
Se, dos textos subversivos de Manuel Antônio de Almeida até os quadros de George Grosz, a arte têm sido a captura da essência de sua era, o que Charlie Brooker, criador da série, faz é consagrar seu nome à lista de grandes artistas do nosso tempo. Tudo bem, eu sei que essa afirmação soa como esse engodo atual de “genializar” qualquer George R. R. Martin que aparece por aí, numa canonização pop escrota, mas vou provar que Black Mirror é mais do que papo furado.
Do esquecimento e perdão
Em sua rápida existência – apenas seis episódios, divididos em duas temporadas, cada um com aproximadamente uma hora de duração e com um foco diferente em cada história – a série britânica propôs várias reflexões sobre o atual estado de nossas relações sociais, abordando temas como identidade, histeria, sociedade do espetáculo, alienação, a interferência dos avanços tecnológicos nas relações pessoais, política e por aí vai. Brooker faz isso com a sensibilidade de um artista e a rigidez necessária para passar sua mensagem.
Um dos meus episódios favoritos, The entire history of you, por exemplo, tem uma premissa muito interessante: tratar do perdão e do esquecimento em uma realidade onde as memórias são armazenadas em um terminal implantado no cérebro e ligado aos olhos, tornando possível que a pessoa reveja todas suas lembranças, sem que nunca se esqueça de nada. Bem, a primeira coisa que pensamos é “isso é genial!”. Entretanto, não demora e outras questões surgem. Afinal de contas, é possível viver o presente sem deixar o passado interferir nas nossas decisões? É possível abandonar o passado? Se podemos “viver”, ainda que seja uma simulação, mas se é possível retornar às memórias mais felizes de nossas vidas, faz sentido seguir vivendo um presente, à espera de um futuro, que talvez nunca se igualem a essas lembranças?
O casal que protagoniza o episódio vê, nesse sistema, uma forma de cobrar as faltas e falhas um do outro, tendo cada lembrança bem nítida para ser assistida e reassistida; cada “erro” – sob o julgamento do outro – podendo ser assistido quantas vezes fosse necessário; cada palavra que desagradou, repetida infinitas vezes. Uma forma de cabal de julgar e condenar o outro, de reviver o momento da ferida e de esquecer que, o esquecimento, pode também ser uma potência da memória. Sim, sabemos que esses são pontos superficiais nas discussões, mas o papel da série não é ensinar, didaticamente, quais são os problemas da humanidade – até porque, precisaríamos tornarmo-nos muito sábios para chegar a tal ponto. Conhecemos uma pequena parcela dos problemas desse mundo e, ainda assim, ignoramos a maioria.
O papel da série, enfim, é de suscitar a discussão sobre os temas abordados. Instigar o interesse em outras linhas de conhecimento, uma filosofia prática, como diria Márcia Tiburi, que nos obriga a pensar e, em casos de extremo sucesso, fazer filosofia, pois o conhecimento deve ser vivido. Ainda assim, sabemos que não são todos que fazem essa reflexão. Para Schopenhauer, rei do camarote do pessimismo – um bom, pessimismo, veremos -, só é capaz de envergar para dentro de si, buscando reparar uma possível verdade subjetiva que não lhe agrada, quem sofreu e sabe que existem feridas na existência humana que só podem ser curadas com muito esforço, paciência e conhecimento. Quem vive sob essa entorpecente felicidade para imbecis que nos é “oferecida”, não é capaz de deixar esse estado banal do pensamento, da interpretação rasa de mundo e do “eu”. Essa é um exclusividade dos pobres diabos que encaram as pequenas mortes que enfrentam dia após dia. Chegamos, então, ao meu segundo episódio favorito.
A dor da existência
White Bear conta a história de Victoria Skillane, que acorda sozinha em uma casa, sem conseguir lembrar quem é. Ao começar suas buscas por pistas de alguma possível identidade, ela se depara com um mundo completamente caótico.
Há um sinal, emitido à todas as televisões, smartphones, rádios e afins, que hipnotiza as pessoas, transformando-as em espectadores da vida real. Esses, passam o dia filmando o que acontece. Há também, caçadores, pessoas que não foram hipnotizadas e aproveitam dessa condição para fazerem o que quiserem. Por último, os indivíduos que não foram hipnotizados e devem manter-se vivos e à salvos dos caçadores. O que não é tarefa fácil, tendo centenas de câmeras e smartphones gravando tudo o que acontece o tempo todo. Eu gostaria de poder entrar em discussões sobre o episódio, mas ele tem um plot twist incrível, que seria a essência da conversa.
Porém, apesar de eu adorar um debate filosófico, o foco aqui ainda é a série. A forma, não a mensagem. Por isso escolhi White Bear. No – talvez – melhor episódio da segunda temporada, Brooker afirma sua capacidade de surpreender em meio ao desconhecido batido. Digo “desconhecido batido”, pois seria muito simples chocar com algo “novo” – e, por “novo”, entenda esse narcisismo pós-moderno de criar obras cujo a captura de algo que não seja a própria imagem refletida num riacho é completamente descartada -, mas o criador da série, aos poucos, desconstrói o absurdo, trazendo a ficcionalidade para o mais perto possível da nossa realidade. E esse programa é realmente absurdo.
Sobre a dor da existência, bem, essa já é um eterno desejo bárbaro e cruel, que move a própria existência e permeia o episódio (sem spoiler!). Quem sabe, depois de assistir a série, você mata alguns desses desejos aí – provável que não – e vem bater um papo com a gente!