O Rei de Amarelo

Se você está procurando apenas uma leitura divertida e sem compromisso, O Rei de Amarelo não é para você. É com uma escrita rebuscada e arrastada que Robert Chambers cria o misterioso universo do Rei de Amarelo: um universo onde um livro de capa amarela levara à loucura qualquer um que atreva-se a lê-lo.

Podemos contar, entretanto, durante toda a leitura, com a ajuda mais do que bem-vinda de Carlos Orsi. Com uma introdução riquíssima, que traça um panorama geral e aprofundado de todas as referências e ligações de Chambers, e com muitas – muitas! – notas de rodapé por todos os lados, que não nos deixam perder os mínimos detalhes da escrita pesada do autor. Carlos facilita muito nosso trabalho.

Ilustração do livro O Rei de Amarelo “Depois de uma leitura como O Rei de Amarelo, as únicas alternativas eram ‘o cano de uma arma ou o pé da cruz’”.

Bem, o livro da editora intrínseca conta com dez contos de Chambers. Dos dez, apenas quatro são responsáveis pelos mistérios que tiraram o sono de muitos fãs de True Detective. Esses quatro contos formam uma única história, de um mundo onde uma peça chamada O Rei de Amarelo, levará à loucura qualquer um que leia seu segundo ato, e que parece ligar todas as vítimas em um universo onírico bizarríssimo.

O segredo criado em torno da peça que nunca nos é revelada por inteiro – apenas trechos do primeiro ato e um pedacinho do segundo – é a chave de sua competência. O terror contido nas páginas do livro é deixado à imaginação do leitor. O que torna o mistério mais consistente. Se pegarmos, por exemplo, o conto O Papel de Parede Amarelo, de Charlotte Perkins, que foi criticado por ser perturbador demais, temos como avaliá-lo e, tranquilamente, chegaremos a conclusão de que a crítica ao conto foi diretamente influenciada pelo desdém pela “literatura decadente francesa”, um exagero, portanto, sem dúvidas. O segundo ato de O Rei de Amarelo não: ele é tão terrível quanto jamais poderemos imaginar.

Isso fica muito claro no último dos quatro contos, O Emblema Amarelo, meu favorito do livro e sem dúvidas o que tem a leitura mais agradável de todas. Nele, um pintor e sua modelo são atormentados por pesadelos horríveis e pela presença de um vigia que dá arrepios! E tudo piora quando o artista encontra sua amada jogada em uma cadeira, estática, com o livro amarelo aberto aos seus pés. É incrível como Chambers consegue nos deixar aflitos com o destino inevitável de seus personagens, e ainda assim nos deixar esperançosos de que seja possível enfrentar a máscara pálida e o manto de retalhos. Nunca conheceremos o mal expresso naquelas páginas, mas a curiosidade por si já é de matar.

Capa do livro O Rei de Amarelo

O Rei de Amarelo ainda conta com mais seis contos de Chambers: dois contos de transição, que estão entre a escrita de ficção e os romances do autor; e outros quatro contos românticos sobre jovens boêmios em Paris. É uma experiência bem legal pra quem gosta do gênero, mas, infelizmente, quatro contos não dão conta de satisfazer a curiosidade sobre a “mitologia amarela”. Uma dor de cabeça que vai te acompanhar em muitas leituras, atrás de algum vestígio da simbologia amarela. Ou esse livro me deixou paranóico.

Projeto Humanos: histórias do cotidiano

Ivan Mizanzuk é designer, com mestrado em filosofia/sociologia e doutorado em tecnologia e design. Mas nada disso importa aqui. No maravilhoso mundo da internet ele é apresentador do Anticast e idealizador do Projeto Humanos.

O Projeto Humanos traz histórias do cotidiano em formato de storytelling. Nele, Ivan entrevista seus convidados que contam alguma história marcante de suas vidas. No piloto Bom de Briga, por exemplo, seu pai, Emerson Mizanzuki, volta aos tempos de moleque e narra a maior surra que já levou.

O programa está lindo, com uma edição muito cuidadosa e uma narrativa cheia de energia e sensibilidade. É uma ótima dica para quem gosta de ouvir uma boa história!

A guerra pessoal de This War of Mine

Você esta com frio, fome e vivendo com desconhecidos sob o teto de uma casa abandonada.

“Vou esperar até de noite e ir naquela área residencial, lá tem comida” você pensa.

Você chega em uma casa e, como de costume, olha pela fechadura para ver se é seguro entrar.

Um casal de idosos conversam sentados à lareira.

“Não se preocupe, querido, eu já comi hoje”.

“Não, amor, isso foi ontem”.

“Ah, verdade”.

Você vai embora pois sente pena do casal simpático de velhinhos.

Em dois dias você e as pessoas que estavam na casa morrem de fome. “Ok, vou começar um novo jogo e desta vez vou roubar os velhos”.

Dito e feito.

30 dias ja se passaram no jogo e você esta sobrevivendo bem e tem muitos mantimentos.

“Não preciso de nada urgente por enquanto, vou passar na casa dos velhos para ver como eles estão”.

A lareira esta apagada e dois corpos estão juntos na cama do quarto, você sabia que esse seria o destino deles mas mesmo assim se sente mal por isso.

This War of Mine é um jogo de guerra e um jogo sobre você, sobre suas escolhas e como elas podem ir contra tudo o que pensa sobre certo e errado, uma batalha entre o “eu” e “eles”.

Então você volta para casa e descobre que um amigo se matou de depressão.

A vida segue.

Eu Robô — parte 1

Escrito originalmente em 1950, Eu, Robô, de Issac Asimov, é uma união de nove contos ligados pela memória da psicóloga roboticista Susan Calvin. Antes de se aposentar, com 75 anos, a Dra. Calvin concede uma entrevista ao Imprensa Interplanetária, onde fala sobre sua carreira na U.S. Robots and Mechanical Men Inc., ilustrando também a história da criação dos robôs e de seu aperfeiçoamento.

Robbie

No primeiro conto, Robbie é um robô babá, sem a habilidade de falar, cujo a função é acompanhar as aventuras cotidianas de Glória. Susan abre a entrevista com essa história, que se passa bem antes da sua entrada para a companhia, quando tinha apenas quinze anos.

Robbie foi criado em 1996 e por isso não falava. A “humanização” dos robôs foi acontecendo aos poucos depois disso, o que acarretou em campanhas antirrobôs e baixa aceitação dos autômatos na Terra. Pequenos detalhes na escrita leve de Asimov vão nos mostrando o contexto histórico e as opiniões que dividem os humanos quanto aos robôs. Entretanto, nada disso parece abalar o amor de Glória por Robbie, que prefere a companhia do robô babá do que a de outras crianças. A medida que a vizinhança começa a perceber o comportamento estranho da menina, contudo, os pais de Glória decidem se livrar do robô. É a partir de então que começamos a entender a relação humano/robô, tanto pelo lado emocional quanto racional, e somos surpreendidos por uma criatura que é mais que uma máquina. Nas palavras da Dra. Calvin:

Houve um tempo em que o homem enfrentou o universo sozinho e sem amigos. Agora ele tem criaturas para ajudá-lo; criaturas mais fortes que ele próprio, mais fiéis, mais úteis e totalmente devotadas a ele. A humanidade não está mais sozinha. […] Os robôs são uma espécie melhor e mais perfeita que a nossa.

Powell e Donovan

Depois da breve história de Robbie, Susan narra as aventuras de Greg Powell e Mike Donovan, que cuidaram dos piores problemas da U.S. Robots de 2011 a 2029. Asimov não é conhecido apenas pelo seu legado em ficção científica, mas também pela sua afinidade por escritas de detetive e mistério, que são muito bem desenvolvidas nos três capítulos seguintes. Greg e Mike são a típica dupla de detetives com um mistério em mãos, geralmente envolvendo um robô de alta tecnologia apresentando alguma contradição com as três leis da robótica. As leis, inclusive, são apresentadas no segundo conto, Andando em círculos, e são importantíssimas para o entendimento das resoluções da dupla.

1ª Lei: Um robô não pode ferir um ser humano ou, por inação, permitir que um ser humano sofra algum mal.

2ª Lei: Um robô deve obedecer as ordens que lhe sejam dadas por seres humanos exceto nos casos em que tais ordens entrem em conflito com a Primeira Lei.

3ª Lei: Um robô deve proteger sua própria existência desde que tal proteção não entre em conflito com a Primeira ou Segunda Leis.

Um exemplo muito legal, da minha história favorita com eles, é quando Cutie decide descobrir sozinho sua origem, não podendo acreditar que uma criatura tão inferior quanto um humano pode construí-lo. Ao ser informado, então, da existência de humanos em outros planetas, do vazio infinito do universo e do funcionamento das bases de redirecionamento de energia espalhadas pelo espaço – onde se encontra agora -, Cutie estende suas buscas para o único campo onde as respostas lhe parecem mais plausíveis: a fé.

Com uma escrita simples e divertida, combinando conhecimento e criatividade, parece que vai ser difícil conseguir tirar Eu, Robô do topo dos favoritos de 2014. Inclusive, a capa dessa edição da editora Aleph também está lindíssima, trabalho de Pedro Inoue e com tradução de Aline Storto Pereira.

Uma ótima dica para quem quer aproveitar o feriado de carnaval. Um marco na história da ficção científica e, assim como seus personagens, robô de menos, humano demais.

Os 10 melhores de 2014

Agora que já revelamos nossos favoritos, vamos numerá-los, certo? Para finalizar essa leva de retrospectiva de 2014, nós juntamos tudo o que houve de melhor nos últimos 12 meses e os ordenamos para vocês. Siga abaixo com:

10. The Comeback volta tão bom quanto nos deixou (e talvez melhor)

A empreitada de Lisa Kudrow na sátira da HBO sobre a estrutura da TV voltou, depois de ser cancelada na sua primeira temporada. The Comeback, agora uma sátira sobre o próprio canal, o star system que se criou ao redor das séries de TV, e do mockumentary, retornou tão bom quanto era — ou, muito provavelmente, bem melhor do que era. Kudrow não confirma, mas há rumores que a série continue conosco por mais um ano. Que The Comeback volte mais um, dois, três, dez anos com seu humor único, que nos faz relembrar de clássicos como 30 Rock, Studio 60 e, claro, ela mesma.

9. Dragon Age: Inquisition é o grande AAA desse ano

Se os jogos não tiveram um bom ano (seja em lançamentos, seja em toda a polêmica do GamerGate), não podemos negar que não houve aqueles bons destaques. Com o fracasso de Watch Dogs em nos entregar aquilo que prometeu, e grandes lançamentos fadados a fracassos de infraestrutura, como Assassin’s Creed UnityDragon Age: Inquisition se revelou o grande lançamento de 2014 para os jogos. Um RPG imenso, inebriante e com a qualidade de história que apenas a BioWare consegue entregar. Não é o melhor jogo do mundo, está recheado de falhas, mas te prenderá em um universo fascinante por centenas de horas.

8. Amantes Eternos, o melhor filme que ninguém viu

O novo filme de Jim Jarmusch é um dos melhores filmes do ano. A história de Adam e Eve, um casal de vampiros com centenas de anos e que assistem a humanidade de hoje com um olhar cético, depois de presenciar maravilhas (e horrores) em outras eras, é narrada com melancolia, dissonâncias e beleza. Se os vampiros no cinema há muito perderam sua identidade, Amantes Eternos devolve-lhes a dignidade com um filme à altura de seus mitos, e transforma Adam e, principalmente, Eve em seres eternos nas telas.

7. A Balada de Adam Henry é um retorno ao método curto

Depois de grandes romances aclamados, como SolarSerena, Ian McEwan retorna às histórias menores, mas não menos empolgantes, com A Balada de Adam Henry, sobre uma juíza que se relaciona com réu. Com toda a destreza nos detalhes típicos do autor, A Balada… mostra um vigor que McEwan não apresentava desde sua estréia, com O Jardim de Cimento, mas empregando toda a magia de seus últimos romances (SábadoAmor sem fim, inclusive, se conectam lindamente com este último), o novo livro do britânico talvez seja uma das melhores peças narrativas literárias de 2014.

6. True Detective é a grande estréia televisiva de 2014

A HBO retorna à forma que a consagrou com A Sete PalmosFamília SopranoA Escuta com o surpreendente True Detective, em uma pequena temporada (antes pretendida como minissérie) intensa e completa. Embora muito de sua fama acabe indo para os mirabolantes planos sequência dos episódios, True Detective maestra para além, conseguindo trazer de volta grandes histórias para o canal, que há muito precisava se sustentar com a alarmante The Newsroom e seus acertos menores, GirlsLooking. E por falar em Looking

5. Looking surpreende com a melhor temporada de 2014

Estreando em janeiro, a temporada inicial de Looking prometia “algo real”. Nas mãos do incrível realizador Andrew Haigh, ela entregou mais. Ela entregou “algo de verdade”. E há diferenças nessas duas chamadas. Looking, por mais de nicho que seja, é uma série que finalmente consegue trazer honestidade nos diálogos e na estética de sua temporada. Em um ano que Mad Men começa o seu fim, Girls derrapa, American Horror Story pisa na bola (de novo), House of Cards perde o fôlego e True Detective vem para balançar, Looking é uma sólida, intensa e honesta história de seres humanos — seres em extinção nas séries de TV.

4. Crush Songs supera superproduções com sua intimidade

Karen O ganhou o mundo em 2013 com The Moon Song. Seguindo uma vertente semelhante, mas ainda mais íntima, Crush Songs embala recordações e exasperações de um relacionamento com uma honestidade  única nos lançamentos de 2014. Assemelhando-se em momentos com For Emma, Forever Ago, mas ainda mais sincero que este, a vocalista do Yeah Yeah Yeahs consegue superar em qualidade obras maiores, mais poderosas e mais abrangentes — incluindo aí o grande álbum do ano, o autoentitulado Beyoncé.

3. 1001 pessoas que conheci antes do fim do mundo é um sopro de vida na blogosfera brasileira

O blog da Aline Vieira traz humor honesto, histórias bem contadas e uma delicadeza visual há muito escondidas na blogosfera brasileira — terra de memes e YouPixes. Com prazer, 1001 pessoas talvez seja o site com os melhores textos que tive o prazer de ler em 2014. E só de saber que ainda temos mais de 900 pessoas pra conhecer com Aline pela frente, dá expectativa e animação ao já fiel leitor.

2. Boyhood é o grande filme de 2014 — e talvez de toda uma geração

Com sua poesia visual baseada nos pequenos e eternos momentos da vida, Boyhood traça uma narrativa simples, não universal, mas sempre honesta sobre um jovem e sua família no Texas. Repleto dos vários tipos de amor que uma vida possa entregar, dos momentos e das incertezas que a juventude nos lança, dos amigos que vem e que vão, dos mestres que nos moldam e nos largam ao vento, Boyhood é certamente o melhor filme de 2014. E talvez seja o coming-of-age definitivo de toda uma geração. De toda uma universalidade.

1. Kentucky Route Zero: Act III toma o palco central em seu teátrico terceiro ato

Depois de EquusPerception of Space, o terceiro ato de Kentucky Route Zero agora busca em Esperando Godot suas referências. Agora, mais que nunca, Kentucky Route Zero assume sua teatralidade e leva o jogador para o meio do palco e dá a ele, na pele, o sentimento de Conway. Com uma potência nunca antes vista em um videogame, a narrativa do jogo da Cardboard Computer agora torna-se não um outsider da indústria dos jogos, e sim uma referência central. Depois do terceiro ato, em que o jogo puxa o jogador pelo pé para que ele sinta as dores de seu personagem, vemos que estamos na mão de mestres em contar histórias. Mestres esse que finalmente conseguem mostrar que os jogos são a evolução natural no método de narrativa. E para traçar o futuro, _Kentucky Route Zero _pisa no passado.