Hannibal vai te deixar com fome

Se eu tenho algum arrependimento na minha vida, é a de não ter acompanhado Família Soprano e The Wire quando passaram na TV. Claro, eu era muito novo (naquela época, eu só assistia E.R.), mas existe algo que a exibição semanal de uma série proporciona que, diferente do “tudo-de-uma-vez” que o Netflix oferece hoje, é mais rico, mais maduro e mais impactante.

Se eu posso de vangloriar sobre algo na minha vida, é a de ter acompanhado Hannibal na sua exibição original.

Hannibal é filho direto das séries definitivas da HBO. Rica em detalhes, em referências visuais, em simbologias e com uma trama compassada de forma perfeita. É o melhor drama da televisão desde que The Wire finalizou sua última temporada, e é a melhor série de um canal aberto americano em muito tempo.

Se você já viu Manhunter, O Segredo dos Inocentes, Dragão Vermelho, Hannibal ou Hannibal: O Início, já sabe sobre o personagem principal: um canibal que caça suas vítimas com propósitos singulares, preparando pratos para suprir seu paladar impecável. Baseado nos livros de Thomas Harris, os filmes mostram o quão decadente o autor tornou seu personagem — de uma força elementar na obra-prima O Segredo dos Inocentes para uma mera punch-line no lixo Hannibal: O Início. O que a série Hannibal faz, com tanta perfeição, é ressignificar um personagem tão rico.

Com total liberdade para isso, Brian Fuller (o showrunner da série) faz de Hannibal um show de mitologia, tornando o personagem de Hannibal Lecter no verdadeiro Diabo, pronto para expurgar da terra os fracos e burros e buscar, nos fortes e inteligentes sua vitalidade e interesse. Muito mais que um seriado policial, Hannibal é um estudo da condição humana — de maneiras estremas, é claro —, e uma história de amor sobre dois personagens que são, ao mesmo tempo, melhores amigos e piores inimigos.

Vivendo por três temporadas impecáveis (há possibilidades de uma quarta, ou de um filme de encerramento), a NBC proporcionou a melhor hora dramática na TV desde 2013. Hannibal é composto por um elenco impecável (Mads Mikkelsen interpreta o canibal sem medo de inevitáveis comparações com a performance de Anthony Hoppkins, criando um Hannibal só seu; e Hugh Dancy faz um vertiginoso Will Graham em uma atuação que faz uma carreira); uma história incrível — que inicia como um drama policial processual (cada semana um caso) para uma verdadeira caçada humana; e o mais belo valor de produção de toda a TV, com visuais incríveis e uma trilha-sonora perfeita. Se a cancelou na terceira temporada, ao menos fez com coragem. A emissora simplesmente permitiu exibir um homem comendo sua própria perna no jantar.

Charmosa, emocionante e construída com perfeição, Hannibal é a série de TV que você precisa assistir agora. Se você conhece as histórias dos livros ou dos filmes, ficará impressionado em como Dragão Vermelho foi adaptado, e surpreso em como a série trabalhou em cima de um material medíocre como os dois livros finais (Hannibal e Hannibal: O Início). Se um dia teremos uma continuação para ver o que será feito sobre o material de O Silêncio dos Inocentes, eu não posso nem imaginar no que Hannibal poderá se tornar.

Hannibal é a ressignificação de um dos personagens mais notáveis da cultura recente. É um trabalho soberbo de técnica. É uma mitologia construída no ombro de gigantes, desde os gregos até a literatura moderna. É uma obra-prima desvelada semanalmente. É indispensável pra qualquer alma.

Looking: a segunda temporada

Desde a primeira temporada eu defendo que Looking é uma grande série que tem como maior defeito buscar um nicho bastante restrito do público. Bem, eu estava errado. Com o episódio dessa semana, Looking se tornou uma das melhores séries na TV atualmente — e se focar em um público específico talvez seja seu maior acerto.

É um salto tremendo o que a série criada por Michael Lannan e primariamente escrita e dirigida por Andrew Haigh conseguiu dar da sua primeira para a segunda temporada, mesmo considerando o primeiro ano de grande qualidade. Se na estréia Looking parecia uma comédia com episódios que beiravam ao drama absoluto, esse segundo ano deu à série a maturidade que Haigh apresenta em seu fabuloso filme Weekend e nos episódios que ele dirige com perfeição (“Looking for the Future” [1x05] e “Looking for a Plus-One” [1x07]). Desde o início (“Looking for the Promised Land”), a série consegue balancear seus temas entre o drama e a comédia e evoluir seus personagens a todo o momento.

Mas sério, o que “Looking for a Plot” fez esse domingo talvez seja o passo definitivo de Looking.

Centrado em uma amada personagem coadjuvante, “Looking for a Plot” é corrido, com algumas escolhas discutíveis de roteiro (levar Patrick para Modesto?), mas mesmo assim o episódio não consegue não ser espetacular. Apresentando tudo o que Looking consegue fazer de melhor, “… for a Plot” desenvolve personagens com impressionante profundidade em apenas algumas linhas de diálogo, investe em grandes verdades sobre seus personagens e leva, a todo o momento, a história para frente, mesmo que voltando em certos momentos a temas passados.

E assim Looking consegue avançar em sua jornada para tornar-se não mais um coming-of-age da temporada passada (o arco longo foi sempre de Patrick, Dom e Augustin precisando amadurecer), e sim tornar-se um estudo de personagens. Em uma cena, nos levando das lágrimas para o riso para o choro novamente, “Looking for a Plot” é uma verdadeira montanha-russa que tem como objetivo nos levar — junto com os personagens — para uma paz interna que eles tanto buscam, nem que seja por um momento só, quando Doris e Dom realizam que, aconteça o que acontecer, eles sempre terão um ao outro.

Looking é, de certa forma, uma versão extendida e semanal de Weekend, o que não é demérito algum. Se no filme de Haigh tinhamos um tempo limite, em Looking podemos acompanhar a jornada dos amigos mais calmamente, e mesmo assim enfrentando dilemas semelhantes. Por diversas vezes, Looking aborda a “saída do armário”, a infância de seus personagens e seus dilemas momentâneos (“porque eu desisti disso”, como Dom o fez essa semana). Sem nunca ficar a sombra do filme, porém, a série consegue ser uma impressionante e íntima realização da televisão contemporânea, que não tem medo de explorar a fundo seus personagens.

A intimidade e a naturalidade com que Looking trata seus personagens e sua temática tornam a série em um produto bastante específico, mas como o próprio Haigh diz sobre Weekend, “quanto mais específico sobre algum assunto você consegue ser, mais universal ele se tornará para as pessoas”. É uma série sobre gays em San Francisco, sim, mas Looking também é sobre seres humanos, como quaisquer outros, em busca de algo que seja real e que valha a pena.

E quem aí não está?