Posts publicados em 11/2021

Relendo “A Visita Cruel do Tempo”

Tem um sentimento que eu gosto muito, e que eu percebi que eu tô sentindo de novo depois de muito tempo, que é o de ouvir uma música que eu amo e me lembrar de todos os momentos que ela tocou no momento perfeito, ou todos os momentos perfeitos que eu queria que essa música estivesse tocando.

Quando eu era mais jovem eu achava que isso era uma loucura da minha cabeça, que por algum motivo minhas memórias tinham um jeito de “molhar” o presente na primeira oportunidade possível. Nos últimos anos, em que eu me distanciei da música e de muitos sentimentos, eu nem lembrava que isso podia acontecer.

Essa semana eu tava revirando uma das caixas no meu quarto (eu acabei de me mudar, e ainda não posso colocar as coisas no lugar) quando encontrei A Visita Cruel do Tempo. Eu nem lembrava que ele é o meu livro favorito, e que eu escrevi sobre ele aqui há muitos anos. Eu comecei a reler ele, e eu lembrei exatamente desse sentimento que eu descrevi acima, porque ele é um livro cheio deles, e eu nunca tinha percebido isso antes.

Não vou resenhar A Visita Cruel do Tempo aqui, até porque eu nem sei mais como fazer isso. É um livro sobre uma mulher, Sasha, e um homem que, por alguns anos, foi o chefe dela, Bennie. Mas o livro dificilmente fala dos dois diretamente, fora os dois primeiros capítulos. A Visita Cruel do Tempo conta a história dos amigos, dos mentores, dos filhos, de pessoas que cruzaram com eles nas ruas. Os capítulos são todos muito diferentes entre si, mudando de pontos de vista e de modo narrativo. Mas, de alguma forma, todos eles se interligam. São momentos na vida de um punhado de pessoas, e como eles reverberam — como eles são lembrados ou esquecidos com o tempo, mas como eles continuam existindo, de alguma forma, aqui e ali.

Esse sentimento me pegou de jeito no terceiro capítulo do livro, “Safari”, que é contado no ponto de vista de vários personagens ao redor de um produtor musical chamado Lou: pelos seus filhos, Charlie e Rolph; e sua amante, Mindy. Parece uma história bem comum sobre a vez em que o pai das crianças levou eles para o Quênia para ver leões. Até que chega numa cena de dança.

Nela, a autora Jennifer Egan emprega um recurso que eu amo, e que lendo eu percebi que é o mesmo recurso que Mike Mills empregou em Mulheres do Século 20: usando o presente pra falar do futuro que os personagens não viveram, mas a gente tá tendo a oportunidade de ouvir como se fosse uma lembrança:

Conforme os dois vão se movendo juntos, Rolph sente a vergonha desaparecer como por milagre, como se estivesse virando adulto bem ali na pista, tornando-se um menino que dança com meninas feito a irmã. Charlie também sente a mesma coisa. Na verdade, essa lembrança é aquela que irá revisitar vezes em conta, pelo resto da vida, muito depois de Rolph ter se matado com um tiro na cabeça na casa do pai aos 28 anos de idade: seu irmão ainda menino, com os cabelos colados à cabeça, os olhos brilhando, aprendendo timidamente a dançar. Mas a mulher que se lembrará disso não será Charlie; depois que Rolph morrer, ela recomeçará a usar seu nome de verdade — Charlene —, desassociando-se para sempre da menina que dançou com o irmão na África. Charlene vai cortar os cabelos curtos e estudar direito. Quando tiver um filho, vai querer batizá-lo de Rolph, mas seus pais ainda estarão traumatizados demais. Ela então chamará o filho assim na intimidade, apenas em pensamento, e anos depois estará em pé com a mãe junto a um grupo de pais torcedores ao lado de uma quadra esportiva vendo-o jogar e olhar para o céu com uma expressão sonhadora em seu rosto de menino.

Esse é um em uma série de parágrafos que revelam o destino dos personagens do capítulo. Quase todos eles recebem um parágrafo assim. O que me impressiona nele é como ele resume uma vida inteira em um parágrafo, mas não reduz a vida da personagem nele. Existe muita coisa que a gente não sabe que Charlie vai viver até adotar seu nome de Charlene, mas a gente sabe como aquele momento que ela tá vivendo naquele instante — aprendendo e ensinando seu irmão caçula a dançar — vai acompanhar ela.

Eu me emocionei muito lendo A Visita Cruel do Tempo, porque é cheio de momentos assim, em que as pessoas percebem que estão vivendo um momento definitivo. Não “decisivo”, necessariamente, mas um desses momentos eternos, que vão ser lembrados até serem esquecidos para poderem ser lembrados de uma nova forma, de novo.

Eu nem sabia que eu ainda gostava de ler tanto assim até esse final de semana, quando peguei esse livro e tive que me segurar pra não devorar ele de uma só vez. Reencontrar ele foi como salvar minha vida. Eu sinto que ele já fez isso antes, mas eu tinha esquecido até que ele me lembrou.

Mona Lisa, explicada

Eu sou um fã do canal Great Art Explained no YouTube. Os vídeos nele me ensinam a reapreciar peças de arte que eu sei que são extraordinárias, mas que eu simplesmente concedo que são porque todos dizem que são ou porque são “bonitas”.

A verdade é que uma peça de arte é um processo que se esconde em um resultado. E no caso da Mona Lisa, que se tornou um sinônimo de obra-prima, é fácil de apenas conceder que ela é uma bela pintura a ponto de desvalorizarmos como ela é uma obra-prima em si: ela é o resultado, e o processo, da carreira de um homem que nunca parou de aprender, e que fez alterações nela até o fim de sua vida, aperfeiçoando-a.

Esse vídeo coloca todos os seus feitos – da pose, do sorriso, da composição, até mesmo da anatomia de sua expressão – em um contexto: por que pintar uma mulher “normal” como Lisa foi um ato revolucionário em si; porque eternizá-la contente, quase confiante, é algo quase transgressor; e como ela nos pede para parar e olhá-la, em um mundo que simplesmente colou seu sorriso em todos os cantos possíveis, ela ainda consegue atrair um olhar diferente.

Achei poético que o melhor vídeo do canal é um vídeo sobre a obra-prima definitiva. Além de instrutivo, é emocionante de assistir. Ainda bem que arte existe.

Um site para rabiscar

Captura de tela de uma série de rabiscos feitos por Clive Thompson, em que uma linha da cor preta faz ângulos retos enquanto cruza em cima de si mesma

Clive Thompson é um escritor, e ele desenvolveu um script na web para ajudar a rabiscar que você pode acessar aqui. Use as setas para guiar a direção do rabisco e aperte “c” para começar um novo.

Ele escreveu sobre o processo e a motivação em um post para o blog Better Humans. Rabiscar ajuda ele a se concentrar no que ele precisa escrever, e uma parte fascinante do post dele é sobre a ajuda cognitiva oferecida pelo rabisco:

Em um estudo, pessoas que rabiscavam enquanto escutavam uma palestra lembraram de 29% a mais do que as pessoas que não o fizeram. Alguns terapeutas suspeitam que nossos rabiscos podem ser úteis emocionalmente, formando pistas para os problemas que estamos lidando em nosso subconsciente. Pesquisas também descobriram que muitas pessoas em empregos de resolução de problemas rabiscam muito. Existe algo sobre essa atividade — que é simultaneamente criativa, uma maneira de liberar energia nervosa, e ao mesmo tempo bobo e atento — que ajuda a revigorar nosso combustível.

Como Sunni Brown, autora de The Doodle Revolution, escreveu

Existe um motivo legítimo do porquê rabiscos aparecem nos cadernos de nossos pensadores, cientistas, escritores e inovadores mais celebrados. E, surpresa, não tem nada a ver com eles fazendo nada. Existem muitas evidências que sugerem que o que realmente est[a acontecendo é que o rabiscador está se envolvendo em um processamento de informações profundo e necessário. Um rabiscador está conectando os caminhos neurológicos com caminhos que antes estavam desconectados. Um rabiscador está se concentrando intensamente, vasculhando informações, concientemente ou não e — muito mais do que a gente consegue perceber — gerando pensamentos massivos.

Eu não sei se rabiscar no computador oferece tantos benefícios para o cérebro quanto um rabisco num papel (provavelmente não?), mas eu acabei de pegar meu caderninho e puxar ele mais pra perto, tá aí algo que eu fiz muito na escola e simplesmente parei depois. Vai ser interessante voltar a fazer isso.